sábado, 12 de abril de 2008

Quando a crítica do Direito se transforma em literatura



DIANTE DA LEI

Tradução - Torrieri Guimarães

Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. -"É possível" - diz o guarda. -"Mas não agora!". O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. -"Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim".
O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferenca, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar.O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: -"Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste".
Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima.
Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. -"Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda. -"És insaciável".
-"Se todos aspiram a Lei", disse o homem. -"Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?". O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: -"Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a".

Sobre a questão das leis - Texto Kafka

Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem.
Não penso neste caso nas diferentes possibilidades de interpretá-las nem nas desvantagens que há quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar da sua interpretação. Talvez essas desvantagens não sejam tão grandes assim.
As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese, certamente até essa interpretação já se tornou lei, na verdade continuam a existir as liberdades possíveis no ato de interpretar, mas elas são muito limitadas.
Além do mais é evidente que a nobreza não tem motivo algum, na interpretação, para se deixar influenciar pelo interesse pessoal em detrimento do nosso, pois as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade nas mãos da nobreza. Naturalmente existe sabedoria nisso – quem duvida da sabedoria das velhas leis ? - , mas é também um tormento para nós, provavelmente algo inevitável.
Aliás essas leis aparentes podem na realidade ser apenas presumidas. É uma tradição que elas existam e sejam confiadas à nobreza com um segredo, mas não se trata nem pode tratar-se de mais uma tradição antiga e, por sua antiguidade, digna de fé, pois o caráter dessas leis exige também que se mantenha o segredo da sua existência.
Mas se nós do povo acompanhamos com atenção desde os tempos mais remotos as ações da nobreza, possuímos a respeito delas registros dos nossos antepassados, demos a esses registros um prosseguimento consciencioso e acreditamos reconhecer nos inúmeros fatos certas normas que permitem concluir esta ou aquela determinação histórica, e se procurarmos nos orientar um pouco por essas conclusões filtradas e ordenadas da forma mais cuidadosa em relação ao presente e ao futuro – então tudo isso é incerto e quem sabe somente um jogo mental, uma vez que essas leis, que aqui tentamos advinhar, talvez não existam de maneira alguma.

Há um pequeno partido que realmente pensa assim e busca provar que, se existem uma lei, ela só pode rezar o seguinte: o que a nobreza faz é lei. Esse partido vê apenas atos de arbítrio dos nobres e rejeita a tradição popular que, na sua opinião, só traz proveitos diminutos e casuais e na maior parte das vezes, pelo contrário, grave prejuízo, já que ela dá ao povo uma segurança falsa, enganosa, que leva à leviandade diante dos acontecimentos vindouros.
Esse prejuízo não deve ser negado, mas a esmagadora maioria do nosso povo vê a causa disso no fato de a tradição ainda não ser nem de longe suficiente, havendo portanto necessidade de que muito mais nela seja pesquisado; de qualquer maneira, por mais gigantesco que pareça, seu material ainda é muito pequeno e séculos terão de passar antes que a tradição acumulada baste.
O sombrio dessa perspectiva para o presente só é iluminado pela crença de que virá um tempo no qual – de certo modo com um suspiro – a tradição e seu estudo chegarão ao ponto final, que tudo terá ficado claro, que a lei pertencerá ao povo e que a nobreza desaparecerá. Isso não é dito, porventura, com ódio da nobreza – em absoluto e por ninguém. Odiamos antes a nós mesmos porque ainda não podemos ser julgados dignos da lei. E na verdade foi por essa razão que aquele partido- muito sedutor em certo sentido - , que não acredita em nenhuma lei propriamente, permaneceu tão pequeno: porque também reconhece plenamente a nobreza e seu direito à existência.
A rigor só é possível exprimi-lo numa espécie de contradição: um partido que rejeitasse, junto coma crença nas leis, também a nobreza, teria imediatamente o povo inteiro ao seu lado, mas um partido como esse não pode nascer porque ninguém ousa rejeitar a nobreza.

É esse o fio da navalha que nós vivemos. Certa vez um escritor resumiu isso na seguinte maneira: a única lei visível e indubitavelmente importa a nós é a nobreza – e será eu queremos espontaneamente nos privar dela?

Kafka e o Direito:reflexões sobre a noção do Direito na literatura

Kafka e o Direito:

reflexões sobre a noção do Direito na literatura




Gisele Mascarelli Salgado
Advogada, Doutoranda em Filosofia do
Direito na PUC-SP, Pesquisadora do CNPq


Introdução, 1. Leis universais não conhecidas, 2. Direito e interpretação , 3. As leis, os governantes e o povo, 4. Direito e a tradição, 5. Questão da Justiça, Considerações Finais, Bibliografia



Introdução

Questões como direito, leis, legitimidade e justiça, são sempre abordadas em livros de Direito de uma forma técnica, seguindo uma abordagem científica. Essa postura que parece tão natural ao estudioso do Direito é muito recente, datando do início do Direito positivo que teve como um dos seus pontos altos a obra de Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito. Porém antes de ser encarado como ciência o Direito, era tido como arte ou mesmo como retórica. Não era raro encontrar discussões de Direito nas áreas da Filosofia e Literatura. O Direito se embrenhava em outros campos do saber, sendo discutido junto de questões morais, éticas, religiosas, comportamentais, etc..
O positivismo jurídico tem se desgastado e é frequente entre os juristas a utilização de outros métodos para se falar sobre o Direito, que parece querer voltar de alguma forma aos moldes do jusnaturalismo, porém sem negar a força do direito positivado. Há uma busca de outra abordagem para o Direito, que não a ciência positiva.
Franz Kafka em diversos livros e contos tratou de questões relativas ao Direito, utilizando-se da literatura para tecer críticas da relação Direito e poder. A lei e o acesso à justiça são temas centrais de uma de suas principais obras: O processo. Kafka não é um autor muito estudado nas faculdades de Direito, nem seus livros lidos com a intenção de se estudar o conceito de Direito ou de Lei. O estudo do Direito ainda se vê preso em paradigmas da ciência positiva, e é recente a busca de uma ciência crítica do Direito.
O objetivo desse trabalho é apresentar a proposta de uma obra literária ser encarada como objeto do estudo do Direito, visando uma abordagem crítica. Kafka por ser versado tanto no mundo do Direito como da literatura, e ter tratado em suas obras diretamente de questões concernentes ao Direito, parece ser um dos autores ideais para essa abordagem. Assim não se trata de uma análise da obra kafkaniana propriamente dita, mas sim de utilizar-se da obra de Kafka, para pensar o Direito. Esse artigo tem como objeto principal de análise os contos: “Sobre a questão das Leis” e “Diante da Lei”, bem como as obras: “O processo” e “A colônia penal”.

1. Lei universais não conhecidas - Kafka e o Direito

1. Lei universais não conhecidas

Kafka fala de um Direito que já se encontra positivado e que tem como premissa ser de conhecimento de todos, uma vez que tem acesso público. Porém esse Direito apesar de poder ser conhecido, tem um caráter secreto e velado, que é reforçado não só pelos juristas, mas por aqueles que fazem as leis. Há uma forte contradição entre aquilo que o Direito deveria ser, para aquilo que ele é. Kafka se ocupa justamente de como o Direito é, e muitas vezes procura mostrar por absurdo como o Direito não deveria ser.
As leis devem ter um caráter universal, porém não são conhecidas do povo. O autor joga com o paradoxo do não conhecimento e do respeito às leis. Assim diz no conto “Sobre a questão das leis”: “Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem”[1].
O Direito somente pode ser aplicado porque há a presunção que todos os conhecem, não podendo se esquivar do seu conhecimento, a não ser em hipóteses excepcionais. Essa presunção se torna cada dia mais difícil em um mundo cada vez mais regrado por leis, que estipulam as condutas humanas nos mínimos detalhes. A corrida da positivação das leis que se inicia no século XIX marca a situação do crescimento das condutas regradas e das alterações legais constantes. Há mais leis e elas mudam mais rápido.
A lei que é para ser conhecida de todos se torna segredo, pois somente poucos têm acesso ao seu conteúdo. Os juristas passam a deter o domínio da lei, que pode ser mais bem manipulado e dominado por aqueles que detém o poder de comando da sociedade. Assim a dominação é feita também através do Direito. Weber irá denominar esse tipo de dominação de dominação burocrática-legal[2]. Essa dominação é mais refinada do que uma dominação religiosa em que as leis são dadas por uma esfera transcendental, e são seguidas em um mundo místico. Porém nenhuma delas deixa de ter o componente do secreto, para que a dominação seja mais eficaz.
Em uma sociedade dita democrática o que é colocado em destaque é a questão da transparência nos atos dos governantes e de seus funcionários diretos e indiretos, visando dar amplo conhecimento das decisões tomadas. O segredo nas questões políticas deve ser evitado, assim como no Direito. A democracia como sistema de governo exige para a sua real implantação, um Direito que seja conhecido pelo povo. Só assim o povo pode se utilizar das leis estatais e também ser punido através dessas, quando cumprido um processo previamente determinado para tal.
Porém o segredo subsiste em sociedades democráticas ou não, pois parece ser inerente as questões políticas. Carl Schmitt rasgando as entranhas do poder estatal, vê nos miúdos do poder a necessidade do segredo[3]. Segredo que permanece na mão dos detentores do poder na sociedade, que fazem do segredo mais um aparato para a dominação, conjuntamente com a lei.
A lei será respeitada uma vez que é um instrumento de dominação, mesmo não sendo conhecida pelo povo. Essa dominação é eficiente, porém não deixa de ser penoso ao povo respeitar as regras que não conhecem. Isso ocorre não porque seja necessário o conhecimento das leis, mas sim pela possibilidade das leis mudarem de acordo com aqueles que detém o segredo, ou seja, daqueles que fazem as leis.
Kafka propõe em diversas obras a possibilidade de não existência da lei, que muitos do povo procuram. Diz o autor: “Aliás essas leis podem na realidade ser apenas presumidas”[4]. Isso porque a lei é um segredo e pode não ter sido criada por aqueles que fazem a lei. Assim a busca pela lei se torna algo incerto e desesperador, pois a esperança de encontrar a lei pode ao fim da busca mostrar-se em vão. Esse é o drama narrado no conto “Diante das leis”.
Um homem do campo pede para entrar na Lei, porém há um guarda que não autoriza sua entrada, mas sinaliza com a possibilidade de um dia o homem poder entrar pela porta que o leva a lei. A busca pela lei é levada ao extremo e consome a vida do homem do campo. Com a morte lhe batendo a porta, o homem na sua incansável busca pergunta ao guarda que lhe veta a entrada: “Se todos aspiram à lei, como é que durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar? O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido inerte. Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”[5].
Resta a dúvida se a lei existia mesmo, uma vez que para quem se destinava, foi vetada a entrada, apesar da insistência. Ao homem resta a angústia de ter diante de si a lei e não poder alcançá-la. Kafka mostra de modo extremo como a esperança por alcançar a lei, pode ser utilizada como elemento de dominação e neutralização de outras possíveis condutas humanas. Esperando uma lei que não vem, o homem se mantém inerte. O conto torna-se dramático, pois se sabe o final, a lei não é alcançada. A fé depositada na Justiça se esvai.
Kafka através das lentes da literatura aumenta o drama do homem me busca da lei, ao colocar a lei que deveria ser universal como um instrumento individualizado. A lei que o homem busca e entende como feita para todos, e apenas feita para ele.
[1] KAFKA, Franz. Sobre a questão das leis. P,
[2] WEBER, Max. Economia e Sociedade. P,
[3] SCHMITT, Carl. O conceito do político.
[4] KAFKA. Sobre a questão das leis. P,
[5] KAFKA, Franz. Diante da lei. P,

2. Direito e Interpretação - Kafka e o Direito

2. Direito e Interpretação

A interpretação das leis é um dos pontos complicados do Direito na sua formulação de ciência positiva, pois se tem de levar em consideração o sujeito que a interpreta. A ciência positiva buscou a retirada do sujeito da ciência, para tornar o objeto livre de influências ideológicas. Assim poderia ter o status de pura ou neutra.
No pequeno texto “Sobre a questão das leis” Kafka diz que há diversas possibilidades de se interpretar uma lei. Porém essa diversidade é restringida, pois nem todas as pessoas podem interpretá-la. O povo não pode interpretar a lei, mas somente aqueles que a fazem, a nobreza. Diz Kafka: “Não penso aqui nas diversas possibilidades de interpretação nem nas desvantagens que se derivam de que algumas pessoas, e não todo o povo, possam participar da interpretação”[1].
Hans Kelsen que formulou um modelo de Direito com base nos padrões de uma ciência positiva, não conseguiu escapar dos problemas da interpretação. Kelsen irá afirmar que existem diversos tipos de interpretações possíveis para uma lei, não existindo uma mais certa que outra. Utiliza-se da figura da moldura da lei para explicar como a lei baliza o conteúdo, mas não pode determinar o sentido.
Nas palavras do próprio Kelsen: “Se por interpretação se entende a fixação por via cognocitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do direito – no ato do tribunal, especialmente”[2].
Se há diversas possibilidades de interpretação para Kelsen e para Kafka, quem restringe as possibilidades é a figura do interprete. Em ambos quem exerce essa função é quem tem o poder de fazer as leis. A “interpretação autorizada” de Kelsen é feita pelo tribunal. A interpretação que vai ser aceita é para Kafka, a interpretação da nobreza. É ela que restringe os diversos sentidos possíveis de uma lei. Diz Kafka: “As leis são tão antigas que os séculos contribuíram para sua interpretação e esta interpretação já se tornou lei também, mas as liberdades possíveis a respeito da interpretação, mesmo que ainda subsistam, acham-se muito restringidas”[3].
Kafka apresenta um fenômeno interessante que é da própria interpretação se tornar lei. Isso é corrente no direito de influência romana, que está pautado em códigos escritos e que tem nos tribunais não só um órgão de julgamento, mas de consolidação de decisões. No Brasil isso ocorre com as súmulas, orientações jurisprudenciais, instruções normativas dos tribunais. Mesmo não sendo leis no sentido estrito, esses documentos com caráter normativo, acabam direcionando ou mesmo vinculando uma interpretação.

[1] KAFKA, Franz. Sobre a questão das leis.
[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. P, 476.
[3] KAFKA, Franz. Sobre a questão das leis.

3. As leis, a nobreza e o povo - Kafka e o Direito

3. As leis, a nobreza e o povo

Kafka no conto “Sobre a questão das leis” utiliza-se da palavra nobreza ao tratar do grupo que domina o povo e que faz as leis. Esse termo é interessante, pois não se trata apenas de um grupo detentor do poder econômico, mas sim de um grupo que alia o poder econômico com uma detenção de informações privilegiada e contato direto com os governantes e influência sobre estes. A nobreza não se submete as leis, pois está acima dela. Somente não estando sob a submissão das leis é que a nobreza pode dominar o povo.
A nobreza também nos faz lembrar um governo que não é instituído pela escolha do povo, mas sim através da hereditariedade. São nobres aqueles que nasceram como tal, ou que vieram adquirir o título através da prestação de algum serviço, à coroa. Esse caráter hereditário do exercício do poder, evidencia a dificuldade de um indivíduo que não seja desse grupo, vir a modificar as leis. E é mesmo difícil que a nobreza ao fazer suas leis, venha a ser influenciada por pretensões de indivíduos que não são do grupo.
Kafka expõe isso no seguinte trecho: “Além do mais é evidente que a nobreza não tem motivo algum, na interpretação, para se deixar influenciar pelo interesse pessoal em detrimento do nosso, pois as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso parece ter sido posta com exclusividade nas mãos da nobreza”[1].
O povo é apresentado por Kafka como um objeto da dominação. Não há para ele escapatória e possibilidade de emancipação, frente ao poderio da nobreza que está acima das leis. As tentativas do povo em lidar com a lei se mostram frustradas. Porém não há ódio por parte do povo contra a nobreza, mas um sentimento de culpa do povo, “por não sermos dignos ainda de ter lei”[2].
No livro “O Processo” o personagem Joseph K. também sofre com os entremeios do poder judiciário, ao não poder saber nem ao menos da acusação que recebera. Joseph K. não consegue se esquivar do processo por nenhuma maneira. Não há saída a não ser se submeter a leis que não conhece. Joseph submete-se a todo o procedimento, em uma mistura de indignação velada e da impensável ou impossível revolta. A dominação é completa. Dominação que é feita através de meios externos (Direito, Dinheiro, Tempo) e meios internos (culpa). Não há ódio e revolta frente às leis, pois se entende que essas são necessárias.
Nesse romance kafkaniano há a presença constante da burocracia estatal, que na forma de seus guardas, juízes e outros funcionários; assegura para que a lei seja cumprida. Porém a essa burocracia não tem conhecimento de todo o procedimento de acusação de Joseph K. Sempre falta a alguém alguma informação, que parece só ser de acesso de alguém com “poderes superiores”. A burocracia assim como o povo é dominada, por não saber as leis, por somente ter acesso à parte da informação. Não sabendo o verdadeiro desígnio da lei, cumpre-se o que foi passado como ordem, sempre na esperança de estar fazendo o que é justo.
[1] KAFKA. Sobre a questão das leis.
[2] KAFKA, Fanz. Sobre a questão das leis. P,

4. Direito e a tradição - Kafka e o Direito

4. Direito e a tradição

Kafka ressalta nos seus textos com temática jurídica o papel da tradição para estruturação do Direito na sociedade. A tradição funciona como meio de justificar a antiguidade dos preceitos jurídicos e a necessidade de serem seguidos, sendo um poderoso meio de justificação da dominação. Assim o argumento da tradição no direito funciona como meio de se esconder o caráter de segredo das leis, que foram confiadas à nobreza. Diz Kafka sobre o papel das leis no conto “Sobre a questão das leis”: “É uma tradição que elas existam e sejam confiadas à nobreza com um segredo, mas não se trata nem pode tratar-se de mais uma tradição antiga e, por sua antiguidade, digna de fé, pois o caráter dessas leis exige também eu se mantenha o segredo da sua existência”[1].
O povo reconhece no Direito sua historicidade, porém a tradição jurídica retira do Direito seu caráter histórico, fazendo com que futuro e passado se unam através da continuidade. O direito do presente parece ser o mesmo direito do passado, sumindo o caráter ideológico/temporal do Direito. Isso torna as leis muito menos discutíveis, pois é difícil se confrontar com a tradição.
O uso da tradição como instrumento de estabilização das mudanças legislativas, é corrente nos Direitos de filiação romana. Muitas vezes não se trata de uma verdadeira tradição jurídica, mas sim de tradições inventadas. Essas últimas levam o recurso do “apagamento” da historicidade ao extremo, ao inventar um passado ou mesmo ao “dar ares de antigo” a um passado recente. Assim surge uma arquitetura de prédios de diversas instituições de Direito, com referências na Roma antiga, propiciando uma aparência de solidez, antiguidade da instituição e principalmente respeitabilidade.
Kafka não deixa de apontar a existência de uma tradição popular, porém para o autor essa não tem a mesma força que a tradição daqueles que fazem as leis, ou seja, da nobreza. A tradição do povo se choca com a tradição da nobreza, e não consegue suplantar a força daqueles que fazem as leis.
No romance a “Colônia Penal” o autor se utiliza novamente da figura da tradição no Direito, dessa vez para tratar da questão do procedimento da execução penal. Trata-se da história de um explorador que é destacado para verificar um determinado procedimento de execução em uma colônia penal. É convidado pelo oficial a assistir a execução de um soldado, condenado por desobediência e insulto ao superior. Espanta o explorador saber que não havia sido feito um julgamento, o condenado não conhecia sua pena, nem tinha tido oportunidade de se defender. O oficial que mantém uma máquina para a execução da pena é um dos últimos seguidores de um comandante que a inventou, e busca em nome da tradição e da memória do comandante, perpetuar o método de execução.
Nesse texto Kafka expõe como as práticas legais são alteradas. O procedimento de execução antigo, que escrevia a sentença no corpo do condenado através de uma máquina complexa, buscando a redenção através da tortura e do suplicio, chega ao seu fim. O procedimento será substituído por ser desumano e empregar práticas de tortura, mas também por ser caro e mal visto pelas pessoas. O registro da sociedade tinha mudado e a tradição não era mais utilizada para manter o velho sistema. Isso aponta para o fato do Direito e seus procedimentos serem históricos e políticos, só sendo desmascarados de sua a-historicidade, quando aqueles que fazem a lei não têm mais interesse em manter o antigo sistema.

[1] KAFKA, Franz. Sobre a questão das leis. P,

5. Questão da Justiça - Kafka e o Direito

5. Questão da Justiça

É possível através de Kafka pensar sobre a Justiça em pelo menos dois sentidos: Justiça como órgão judiciário de decisões processuais e Justiça como sentimento. No segundo sentido é possível encontrar textos tratando da Justiça não só no âmbito jurídico, mas também no âmbito pessoal, como no “Veredicto”, em que um pai julga o filho e este se auto-condena com o enforcamento.
O que nos interessa aqui é a intersecção dos dois sentidos de Justiça, ou seja, o sentimento de Justiça frente aos órgãos judiciários de decisão (tribunais, juízes, executores de sentença, etc..).
No drama a “Colônia Penal” o sentimento de justiça frente ao órgão executor das sentenças, está o tempo todo presente. O condenado a sentença não sabe de sua sentença, não há averiguação dos fatos, não há possibilidade de defesa. O condenado não tem o sentimento de que não se está fazendo justiça, pois nem ao menos conhece seu provável destino, a morte. O sentimento de injustiça surge no próprio executor da sentença (oficial), e na pessoa que iria assistir a execução (o explorador). Esse explorador que era um estrangeiro fora designado para opinar sobre o procedimento, ao ouvir as explicações de como funciona a máquina que aplica a sentença escrevendo-a no corpo do condenando, não se furta de pensar consigo: “A injustiça do processo e a desumanidade da execução estavam fora de dúvida”[1].
O procedimento de execução através de uma complexa máquina que no fim de 12 horas de suplício, transpassava o corpo do condenado, levando-o a morte, tornara-se injusto por ser desaprovado por um grande número de pessoas. O “oficial” conta que anos antes, o mesmo procedimento era tido como respeitável e que pessoas disputavam um lugar na platéia para assisti-lo. Era inclusive assistido por crianças, pois tinha como objetivo a educação pela pena. Kafka nos põe a pensar o que seria realmente esse sentimento de justiça, pois ele parece estar ligado ao que a sociedade espera do órgão judiciário.
A sociedade na época áurea do procedimento executório feito pela máquina, ao ver um condenado morto, em sua grande maioria teria o sentimento que a justiça foi feita. Porém a sociedade do qual do qual o “explorador” fala, já entende o contrário. Isso não porque o método de execução mudou, nem suas práticas, mas sim porque há uma desaprovação social.
Kafka leva ao extremo a questão da justiça ao inverter os papéis do condenado e do executor da sentença. O “oficial” vendo que a máquina de sentença não tinha mais vez, e que todo o seu propósito de mantê-la era em vão, decide libertar o condenado. Não restando ao oficial saída, decide seguir as recomendações do comandante que criara a máquina e aplica a si mesmo a sentença: seja justo. Essa não chega a ser escrita em seu corpo, pois a máquina por falta de manutenção se desmonta. Máquina e seu último defensor acabam-se no mesmo ato, e é o fim de uma era. Um novo sentimento de justiça requereria um novo proceder dos órgãos judiciários, ou seja, da Justiça. Porém os sinais poderiam ser inversos, pois nesse caso uma alteração nos órgãos de justiça, também poderia levar à alteração no sentimento de justiça.
No conto o “Advogado de defesa” o narrador busca por um advogado em um prédio em que julga ser um tribunal, porém nem ao menos sabe se é um órgão de decisões jurídicas. A incerteza se aquele é um tribunal, se confunde com a incerteza de se alcançar a justiça como sentimento. Kafka ressalta no texto através da fala do personagem que um defensor era menos útil em um tribunal, do que fora dele. Isso porque no tribunal se presume que se está fazendo justiça, e essa presunção não corre fora dele. Dentro do tribunal se presume que se está fazendo justiça de acordo com a lei.
A fé no tribunal é necessária para se manter o sentimento de justiça. Assim diz Kafka: “Se alguém assumisse que aqui se procede com injustiça ou leviandade, não seria possível vida alguma, é preciso ter confiança no tribunal, que ele abre espaços para a majestade da lei, uma vez que essa é a única tarefa; mas a lei propriamente dita tudo é acusação, defesa e veredicto....”[2].
Um defensor é o que falta em diversas obras de Kafka, tornando a busca pela justiça ainda mais difícil. Na “Colônia Penal” e no “Processo” o acusado não tem um defensor em nenhum momento. No conto “Diante da lei” o camponês também não tem quem lhe auxilie para que ele alcance a lei. Por outro lado é em ambientes que não se espera a figura do defensor que Kafka surge com eles. No livro “América /Desaparecido”, o primeiro conto intitulado “O foguista”, narra a história de um foguista de um navio é defendido pelo protagonista (jovem imigrante alemão nos Estados Unidos), contra as injustiças do capitão. Sem um defensor é difícil se fazer justiça.

[1] KAFKA, Franz. A Colônia Penal. P, 47.
[2] KAFKA, Franz. Advogados de Defesa. P, 142.

Considerações finais - Kafka e o Direito

Considerações Finais

Kafka apresenta um universo muito rico para o crítico do Direito, que busca em suas obras uma reflexão precisa sobre questões que relacionam Direito e poder. A busca de uma justiça é constante em suas obras, oferecendo possibilidades de se pensar o Direito, não só ligado a questões que se referem diretamente a ele. Revisitar esses e outros autores é importante para o estudioso de Direito, que procura ir além de uma mera técnica. Pensar nos aspectos impensáveis, ir além da fronteira é tarefa daqueles que buscam mudar a sociedade. Kafka ao pintar com tintas fortes suas obras com temas referentes ao Direito, nos incomoda, leva-nos a pensar e nos inconformarmos para buscar a mudança. Assim é possível sonhar com uma metamorfose do Direito.



Bibliografia



BENJAMIN, Walter.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 ed., Coimbra: Armênio Machado, 1984.

KAFKA, Franz. Diante da lei. In: O processo. Rio de Janeiro: Globo, 2003.

_____. Sobre a questão das leis. In: Narrativas do Espólio. (trad. Modesto Carone). São Paulo, Cia das Letras, 2002.

_____. O processo. Rio de Janeiro: Globo, 2003.

_____. Na Colônia Penal. trad. Modesto Carone). São Paulo, Cia das Letras, 1998.

SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília, Unb, 1995.